Crônicas

O "Garganta"

 

- E aí, Arnaldo. Eu soube que vocês pedalam muito, fazem viagem, trilhas...

- É verdade. Daqui da firma só eu e o Rodolfo, mas temos mais um "maluco" na turma, o Guimário, um amigo lá do meu bairro. E você, gosta de pedalar?

- Me amarro! Dei uma revisada na minha bicicleta e comecei a treinar. Quem sabe logo em breve estou pedalando com vocês.

- Legal, bicho! Pô, é difícil a gente conseguir pessoas que topem pedaladas mais longas. Vamos lá, quando quiser é só dizer. Pedalamos quase todos os sábados. E você? Tem treinado por onde?

- Pois é, tenho andado quase todo os dias. Saio lá de casa pela orla, vou até a ponte velha e retorno pela avenida do canal. Gasto uma hora e dez, com uma média de vinte e oito quilômetros por hora, mais ou menos.

- Pô, bicho! Boa média, heim?

- É, mas ainda dá pra melhorar...

Mais tarde, naquele mesmo dia, Arnaldo se encontra com Rodolfo.

- Oi, Rodolfo. Tudo bem? Sabe quem está afim de pedalar com a gente?

- Quem? Não vai dizer que é mais um "mauricinho". O último que você trouxe só queria mesmo desfilar na orla com a sua bicicleta nova, todo paramentado. Pedalar mesmo que é bom, nada! – respondeu Rodolfo, com uma ponta de impaciência, fruto das inúmeras tentativas frustadas de aumentar a turma, que chegou a ter, na sua fase áurea, quatro membros que topavam se aventurar por trilhas ou em viagens maiores. Mas que se reduzira a três, desde que o Gilmar encontrou a solução para o conflito interior que o angustiava toda sexta a noite, antes de uma sábado inteiro de pedal. – Afinal eu não quero ser atleta. Eu só pedalo pra manter a forma. Perder minhas sextas-feiras, só se eu fosse disputar a Tour de France! – repetia, sempre que alguém lhe perguntava se ainda pedalava mais de cem quilômetros nos sábados.

- Não, bicho! Você conhece o Carlos, aquele novato do departamento de informática?

- Sei quem é, o Carlão.

- Esse mesmo! O cara me disse que adora pedalar. Inclusive está treinando forte. Sai da casa dele, ali perto do hotel Regente, pega a orla até a ponte velha e volta pela avenida do canal. Faz isso em uma hora e dez, vinte e oito quilômetros por hora de média, bicho! Parece que o cara é bom!

- Humm! Esse percurso dá, no máximo, vinte quilômetros. Tem alguma coisa errada nessas contas. Se ele gasta uma hora e dez minutos, a média é, no máximo, dezessete e um pouquinho. Se ele realmente faz vinte e oito de média, então não gastaria mais de 43 minutos! Sei não....

- Ele deve ter se enganado com os números. Eu mesmo, você sabe, me enrolo todo com esse negócio de distância, tempo, média......

- Tá bom, de repente é mais um que entra na turma pra valer.

Cinco semanas depois, numa tarde de sexta-feira, Carlão se encontra com Arnaldo, na lanchonete da empresa. – E aí, Arnaldo? Tudo bem?

- Tudo bem, bicho? Amanhã vamos dar uma pedalada, não vai querer ir com a gente?

- É...pode ser. Por onde vocês vão? A média que vocês fazem é menor ou maior que vinte e cinco?

- Que vinte e cinco que nada, bicho! A nossa média não é maior que vinte ou vinte e um quilômetros por hora, e pedalando, heim! Sem contar o tempo das paradas. O percurso é um pouco longo, são cento e vinte quilômetros, mas é tudo asfalto.

- Ah, então é tranqüilo! Vamos lá! Tá marcado, dessa vez eu ando com vocês!

- Você vai andar com esses caras, meu irmão! – Disse Valdir, que estava sentado ao lado de Arnaldo, escutando a conversa com interesse – Já preparou o caixão? Se você quiser eu tiro as medidas. Esses caras são doidos! – insistiu Valdir, cuja maiores frustrações na vida era não ter sido convidado para a festa de aniversário do Gerente Geral e nunca ter acertado as macabras previsões, que costumava fazer antes de cada viagem de bicicleta que Arnaldo fazia.

- Pô, Valdir! Lá vem você de novo! Você nem conhece o cara direito, bicho! Tá marcado, então, Carlão. Amanhã às sete e trinta, no posto da avenida do canal.

- Marcado. Sete e quinze já estou lá.

Na manhã seguinte: – Apressa essa porra, Arnaldo! O Carlão já deve tá puto da vida. Você só passa lá em casa atrasado, cara! E ainda vamos passar na casa do Guimário....

Quinze minutos depois: - E aí, bicho! Atrasamos um pouquinho, mas chegamos. Esse é o Guimário. Guimário, esse é o Carlão. O Rodolfo você já conhece, né?

- Tudo bem?

- Prazer.

- Tudo em cima?

- Espera um pouco que ainda vou calibrar o pneu.

- Não coloca ar, não. Vai por mim! Eu só uso nitrogênio. No carro e na bicicleta. É outra performance, cara! – aconselhou Carlão, com uma segurança que não deixou espaço para qualquer questionamento.

- É mesmo, bicho? Vivendo e aprendendo, não custa nada testar.

Dez minutos mais tarde: - Porra, Carlão! Se eu soubesse que esse tal de nitrogênio era pago tinha enchido o pneu com ar mesmo, como sempre fiz.

- Calma! Depois você me diz o que achou. Espera pra ver. Se não fosse bom ninguém pagava, não é verdade?

- Vamos lá, pessoal! Já estamos muito atrasado. Qual é o caminho? Vamos subir o viaduto ou desviamos por baixo?

- Não! Vamos por cima mesmo – falou Carlão e, juntado a ação às palavras, partiu acelerando viaduto acima, com a turma atrás dele.

Uma hora e vinte minutos ou 25 Km depois: - É, Guimário. O cara tá andando numa boa, até agora. O Arnaldo está mais lento do que ele. Vamos esperar um pouquinho, pra não assustar logo na primeira pedalada.

- Vamos lá, tartarugas! – Grita Carlão, passando rápido por Guimário e Rodolfo, que esperavam parados no acostamento.

Quarenta minutos ou dez Km depois: - É, pessoal. Ladeirinha boa, heim! Calozinho de lascar! Ainda tá muito longe?

- Pô, Carlão! Só andamos até agora trinta e cinco quilômetros, ainda faltam mais de oitenta! Vamos parar num boteco ali na frente e beber uns refrigerantes. Ah! As ladeiras nem começaram ainda!

Uma hora ou dez Km depois: - E aí, Arnaldo. Aonde está o Carlão? Já estou esperando aqui há uns dez minutos. O Guimário se mandou na frente.

- Aquela ladeira lá atrás acabou com o que sobrava dele, bicho! A última vez que o vi, ele estava empurrando a bicicleta.

Dez minutos depois chega o Carlão, ou o que sobrava dele, com apenas metade da bunda apoiada no selim. - Meu irmão, que ladeira do caralho! Essa me matou. Espera aí um pouquinho, deixa eu me recuperar.

- Daqui a uns seis quilômetros fica o posto onde vamos almoçar, Carlão. Vamos devagarinho. Como é? Dá pra ir?

- Seis quilômetros?! Puta que pariu, isso tudo? Ainda tem ladeira? Vocês não me avisaram que tinha ladeira nessa pedalada. Pô, eu nunca tinha subido uma ladeira antes!

- E você achava que era um percurso plano de 120 quilômetros?!!

Quarenta minutos ou seis Km depois: - Já estou aqui esperando a quase uma hora, pessoal. O que foi que houve? Algum pneu furado?

- Pneu furado que nada, bicho. O Carlão botava a "coroinha" até pra subir quebra-mola! Mas não goza não, que o cara está arrasado. Psshhh! Ele tá chegando.

- E aí, Carlão! Eu não falei que era moleza! Agora é só "abastecer", descansar um pouco, que você vai se sentir novinho em folha. Agora só faltam setenta quilômetros. Falando assim parece muito, mas só tem umas duas ladeirinhas e um ventinho contra. Pra quem chegou até aqui, o pior já passou.

- Pessoal - começou dizendo Carlão, com um ar solene de quem tinha tomado a decisão mais importante da sua vida - pra mim acabou. Só saio daqui pra subir num carro que me leve direto pra casa.

- É um pena....Bem, vamos te ajudar a pegar uma carona - Falou Rodolfo.

- Não vai ser fácil conseguir carona aqui, mas eu tenho uma solução, bicho. O Valdir, lembra dele? Pois é, ele tem uma pick-up. Liga pra ele e diz que você está aqui no meio da estrada, fudidão, que ele vai adorar te fazer esse favor!

Na segunda-feira de manhã Carlão estava assistindo televisão, de pijamas, sentado em uma almofada, colocada sobre a poltrona, quando recebe um telefonema: - Alo! É o Carlão? Tudo bem, bicho? Valdir já contou pra gente, aqui do departamento, que deu tudo certo na operação resgate de sábado. Ele foi legal mesmo, heim? Ainda te ajudou a subir com a bicicleta até o apartamento. Não te falei que ia dá tudo certo! Não vem trabalhar hoje não?

- Não, meu papagaio amanheceu com uma gripe daquelas. Vou aproveitar e passar lá no posto da avenida do canal. Eu acho que aqueles sacanas estão vendendo nitrogênio falsificado!!

   

 

© 2000 - Alfredo Borba