Crônicas

O Susto

 

Parados na margem do rio, a menos de 100 metros do ponto onde ele deságua no mar, os três amigos olhavam ansiosos para a outra margem. Já passava das quatro horas da tarde, estavam ali há mais de meia hora e não tinham avistado um barco sequer. Atrás deles estendiam-se mais de 40 Km de praia até a pousada mais próxima, por onde tinham passado, à frente a barra do rio impedindo-os de chegar ao destino daquele primeiro dia de viagem, a primeira que faziam juntos e, também, a primeira que faziam de bicicleta.

- E então, Juca? – perguntou Zão, já um pouco alarmado – O que é que a gente faz? Você tinha previsto isso?

- Calma, Zão. Numa barra de rio nunca falta um barco, tem sempre algum pescador. Ainda mais um rio como esse, com um manguezal tão grande deve ter mais peixe do que em 100 Km de praia. – disse Juca, com a autoridade de quem tinha planejado a viagem e com todo o conhecimento acumulado nos veraneios que fizera quando ainda era garoto.

- Mas já faz quase uma hora que estamos aqui e ainda não vimos ninguém! E se não aparecer um barco?

- Bem...Nos trouxemos sacos de dormir para essa eventualidade, não foi? Temos comida, se é que biscoito e chocolate pode ser chamado de comida. Mas de fome agente não morre. – respondeu Juca, mudando de convicção como quem muda de camisa.

- É, pessoal. Voltar não é a melhor opção, iríamos perder muito tempo. Seguir pela margem do rio, não sei se é possível. Além do mais o rio não segue na direção da cidade e tem todo esse manguezal.....- disse Marcão, que tinha permanecido calado, analisando a situação, com uma calma incomum em situações como aquela.

- Pessoal, olha uma pescador ali, na margem do rio! – gritou Zão.

- É mesmo, cara! Tem uma pessoa lá. Ah, ele está pescando de tarrafa. Pescador de tarrafa que pesca na beira de rio não tem barco.- disse Juca, com o conhecimento de causa de quem assistia "Pesca e Companhia" todo os domingos.

- Eu tenho certeza que aquele cara tem uma canoa! – afirmou Zão, com o conhecimento de causa de quem não estava gostando nem um pouco da idéia de passar a noite na beira daquele rio.

- Deixa que eu vou falar com ele – se adiantou Marcão, e saiu andando na direção do homem.

Marcão conversou um pouco com o pescador e, de repente, o homem largou a tarrafa e saiu correndo, na direção de um matagal não muito longe da margem do rio.

- O que foi que você falou, Marcão? Pô, o cara saiu correndo como um louco!

- Eu só perguntei se ele queria ganhar uma grana para atravessar a gente para o outro lado. Ele disse que ia procurar a canoa de um amigo que fica escondida naquele mato.

Seguiu-se um momento de suspense, enquanto o pescador entrava e saia do matagal e entrava de novo. De repente ele emerge com alguma coisa na cabeça. - O que será aquilo? - disse Zão arregalando os olhos, como que para ver melhor- Será que é o remo? Pô, imagina o tamanho da canoa!

- Hiii, meu irmão! Aquilo não é um remo, porra nenhuma! Aquilo é a canoa! Ô Marcão, o que é que você tá olhando? Perdeu alguma coisa no rio?

- Tô olhando prá qual lado é a correnteza. Ainda bem que a maré está subindo, prá dentro do mar a gente não vai.

- Meu senhor, essa canoa é segura? - perguntou Zão

- Tá cum medo, moço?

- Nããão, o quê é isso! É que tô preocupado com a minha "bike", ela vai caber ai dentro?

- A sua o quê, home?! - perguntou o pescador, meio desconfiado.

Na água, a canoa parecia ainda menor - Quem vai primeiro? - perguntou Marcão, quebrando o silêncio que se fez, quando o pescador quase virou a canoa tentando se equilibrar em pé, com o remo na mão.

- Eu não falei? Moleza, pessoal. Duvido que exista uma barra de rio onde não se ache uma canoa. - disse Juca, ajudando Zão e Marcão a sair da canoa, já na outra margem, na última das três viagens que foram necessárias para atravessar os três, as bicicletas e a bagagem. Os dois olharam Juca sem responder. Conheciam-se há algum tempo, mas ainda não tinham intimidade suficiente para mandar o Juca e suas "teorias" para o lugar que eles gostaria que fossem, sem perder o amigo.

Aliviados e com a confiança readquirida, eles pedalaram pela praia os poucos quilômetros que faltavam para a pequena cidade onde tinham planejado passar a primeira noite juntos. A primeira noite da primeira viagem de bicicleta é uma ocasião muito especial. Guardadas as proporções, é como a primeira noite de um casamento, poderá determinar todo o futuro do cicloturista. Conseguiremos pousada? Eles deixarão as bicicletas ficarem dentro do quarto? Conseguirei dormir bem? Esses caras roncam? Amanhã de manhã será que vou estar bem, vou conseguir pedalar o dia todo? E depois de amanhã? Cada quilômetro que era acrescentado ao odômetro do ciclocomputador os deixavam mais perto da primeira noite. Um sentimento de euforia, pelo cumprimento da primeira etapa, misturava-se a uma inquietação crescente.

- Eu acho que é aquela casa ali na frente.

- É lá mesmo, Zão. Olha a placa, "Pousada Estrela do Mar". Parece nome de brega, mas tá com cara de ser legal.

- Deixa que eu vou lá dentro ver se tem vaga - se prontificou Marcão - Segura aí minha bicicleta.

Dez longos minutos depois: - E aí, Marcão? - perguntou Juca ansioso, afinal ele tinha garantido que nessa época do ano seria impossível não achar vaga.

- Tudo certo. Trinta paus. Vamos lá?

- Cada um? - perguntou Zão

- Não, os três! O quarto é grande. E com café da manhã, heim!

- Beleza! Vamos lá.

Entraram na pousada empurrando as bicicletas, acompanhados pelos olhares curiosos de alguns hóspedes e do pessoal da recepção. Começaram a preencher as fichas de hóspedes - Nas opções de tipo de transporte não consta "bicicleta", pessoal - disse Zão rindo.

- Temos um depósito lá nos fundos que cabe as bicicletas - disse a moça da recepção, quando chegaram à porta do quarto, sem saber que o cicloturista e sua bicicleta são inseparáveis. É mais fácil colocar um casal em lua-de-mel em quartos separados.

- Obrigado, senhorita. Mas todas as nossas coisas estão nas bicicletas, preferimos que elas fiquem no quarto conosco. - disse Marcão, mais formal do que a ocasião permitia.

- Tudo bem, vocês é quem sabe - disse a moça, de um jeito que era como se tivesse dito "Tudo bem, cada doido com sua mania!".

O quarto era grande, daria para acomodar as bicicletas sem problema. Mas nem tudo estava perfeito: o quarto tinha uma cama de solteiro e uma cama de casal.

Marcão, fingindo uma certa displicência, jogou a sua bolsa, que atravessou todo o quarto indo aterrizar na cama de solteiro, do outro lado da cama de casal, num arremesso que, no basquete, seria digno de três pontos. Zão e Juca, fingiram que não viram.

Duas horas mais tarde os três amigos estão num restaurante que, segundo foram informados, tinha uma macarronada de provocar inveja em italiano. Ciclista gosta mais de macarrão do que macaco de banana.

- Por via das dúvidas vamos tomar apenas uma cerveja antes e outra durante o jantar - sugeriu Marcão.

- É melhor, ninguém sabe como a gente vai acordar amanhã, depois da pedalada de hoje - aprovou Zão.

Relaxados, depois das emoções vividas nesse dia memorável, com a ajuda de um copo de cerveja e a perspectiva de uma excelente macarronada, conversavam animadamente. A uma certa altura da conversa Zão falou: - E aí, Marcão, vamos decidir quem vai dormir na cama de solteiro?

- Não precisa se incomodar não, cara. Eu posso dormir, numa boa! - disse Marcão, com a maior cara de pau.

- Ah, cara, não te faz de inocente. Todos nos estamos querendo dormir na cama de solteiro. Vamos decidir aqui quem fica nela - insistiu Zão.

- Concordo. Vamos decidir no pauzinho - apoiou Juca.

Passado os pauzinhos, Juca ganhou a desejada cama de solteiro. Vendo que Marcão e Zão não estavam muito felizes em passar a noite na mesma cama, Juca mudou de assunto - Pô, Zão. Nos te conhecemos já há algum tempo e não sabemos teu nome. Zão é apelido, né?

- É. Meu nome é Geraldo.

- Geraldo? De onde vem o Zão, então? - perguntou Juca

- Foi minha mulher que colocou - Zão começou a explicar - Quando a gente começou a namorar ela gostava de me chamar de "tesão", daí pra "Zão" foi um pulo.

Juca deu uma gargalhada, mas notou que Marcão não achou graça nehuma na estória do apelido de Zão. "Dormir na mesma cama com um cara que eu chamo de Zão, que vem de "tesão".....Se a turma souber eu vou ser gozado para o resto da vida", pensava Marcão.

Depois da macarronada o sono bateu forte. Pagaram a conta e foram rápido para a pousada. Chegando no quarto, enquanto Juca arrumava a cama de solteiro e Marcão escolhia o lado da cama de casal, Zão entrou no banheiro. Demorou tanto que os outros dois desistiram de esperar para ir ao banheiro e se prepararam para dormir. Depois de tudo que tinha direito Zão, saindo do chuveiro, percebeu que a toalha tinha ficado no quarto, em cima da bicicleta. Sem pensar duas vezes, saiu do banheiro do jeito que veio ao mundo, para pegar a toalha. Quando Marcão, já quase dormindo no seu lado da cama, viu Zão saindo do banheiro peladão, deu um pulo da cama e, em pé com o dedo apontando, gritou:

- Pera aí, Geraldo! Pelado desse jeito você não vai dormir comigo, porra nenhuma!!

   

 

© 2000 - Alfredo Borba