Artigos

Aracaju-Salvador "Non-Stop"


Texto e Fotos: Alfredo Borba.

Translate this page

 

Uma das coisas que sempre me fascinou no ciclismo, desde os tempos em que eu pedalava na minha "barra circular" pelas estradas que cortam os canaviais nos arredores da minha cidade natal, Timbaúba, no interior de Pernambuco, era a possibilidade de percorrer longas distâncias, contando apenas com a própria energia. Longa distância, para mim naquela época, significava ir até as cidades vizinhas ou até o "engenho" do meu avô, onde eu costumava passar os fins-de-semana. Nessa aventuras eu, meus irmãos e alguns amigos chegávamos a percorrer até 20 Km!

Mais de vinte anos depois, quando o ciclismo não passava de saudosa reminiscência da adolescência, eu procurei na bicicleta uma forma agradável de manter a forma. Não demorou muito a surgir (ou ressurgir?) a idéia maluca de fazer uma viagem entre Aracaju e Salvador, em três dias. 300 Km em três dias! Tudo bem, as bicicletas agora são verdadeiras "máquinas", com quadro de alumínio, 21 marchas, guidom aerodinâmico, mas mesmo assim 100 Km por dia era algo muito além do que eu poderia conceber como possível de percorrer em uma bicicleta. Djalma e Guilherme, meus companheiros de pedalada, toparam na hora. Com o apoio das nossas famílias e dos amigos conseguimos realizar a nossa primeira viagem, rompendo os nossos próprios bloqueios e tabus. Essa foi a primeira de uma série, que narramos em outros artigos sobre cicloturismo.

A medida que as viagem foram sendo realizadas e a bicicleta nos envolvendo cada vez mais, passamos naturalmente a procurar mais informações sobre o ciclismo. A descoberta, através da Internet, do ciclismo de longa distância, no estilo europeu de "Audax" ou "Randonnée" , ou no estilo "Century" ou "Double-Century" americanos, reacendeu meu antigo fascínio, já bem alimentado pelo cicloturismo. Qual seria nosso limite? Que distância poderíamos pedalar sem parar para pernoitar? Para responder a essas perguntas decidimos ultrapassar a barreira dos 200 Km em um único dia. A nossa maior distância, até então, tinha sido 143 Km, em uma de nossas viagens. Após algumas semanas de treinamento, fizemos os 215 Km que separam Aracaju da cidade de Coruripe, no litoral sul de Alagoas, em pouco mais de 15 horas, com uma conservadora média global de 14 Km/h, como planejado, enfrentando um persistente vento contra em todo o trajeto. Mais um paradigma quebrado!

Com nossa autoconfiança reforçada, não demorou muito a procurarmos um novo desafio: a barreira dos 300 Km! Decidimos, eu e o Guilherme, fazer a distância em um tempo máximo de 20 horas, o que representava uma velocidade média global de, no mínimo, 15 Km/h e, como sempre, sem carro de apoio, seguindo as regras do "randonnée". O percurso Aracaju-Salvador caia como uma luva. As dificuldades envolvidas nesse projeto não eram nada desprezíveis, o que dificultava muito o planejamento:

  • A distância era de 85 Km a mais do que a nossa maior distância percorrida em um só dia e com uma média global maior.
  • Diferentemente dos eventos tipo "randonnée", organizados na Europa e nos Estados Unidos, nós não teríamos pontos para descanso abastecidos com comidas apropriadas, líquido energético ou isotônicos.
  • Quase a metade do percurso seria na "Linha Verde", a estrada litorânea do norte da Bahia. Essa estrada, ainda relativamente nova, tem muito pouco local de apoio. Além disso é uma verdadeira "montanha russa", com mais de 60 ladeiras ao longo dos seus 140 Km de extensão. As ladeiras não são muito extensas, mais muitas delas são bem inclinadas. Calculamos que o percurso totaliza cerca de 3.500 a 4.000 metros de desnível vertical acumulado.
  • Teríamos pelo menos oito horas de pedalada à noite. Por questão de segurança queríamos atravessar a periferia de Salvador de dia, o que limitava as nossas opções de horários de saída.
  • O sol e o calor característicos do nordeste eram dificultadores adicionais, na já complicada equação que teríamos que resolver.

Para compensar a distância e o incremento da média, aumentamos a intensidade do treinamento, fazendo longas distâncias com velocidades médias superiores à que faríamos na viagem. Chegamos a fazer 120 Km com média global de 20 Km/h. Uma medida adicional era a redução do peso. Deveríamos levar apenas o indispensável. Mas logo vimos que o "indispensável" para uma pedalada com essas características ainda seria muito pesado. Para diminuir o efeito do calor, principalmente nas subidas da Linha Verde, decidimos estabelecer o horário de saída para as 14:00 Hs, o que significava, pelo nossos cálculos, atravessar a Linha Verde entre 20:00 Hs e 6:00 Hs da manhã seguinte. Como conciliar pouco peso com a travessia da Linha Verde a noite? Sem um único lugar para abastecimento de água e alimentação, em 140 Km, exceto pelos dois postos da polícia rodoviária, onde poderíamos talvez conseguir água?

A alimentação a base de bebida energética (em pó), barra energética e gel era uma boa solução, conciliando a redução de peso com a necessidade de, pelo menos, 300 calorias por hora. Mas, em relação a água não podíamos fazer muito coisa, era fundamental evitar a desidratação, ingerindo bastante líquido. Para atravessar a linha verde precisaríamos de, no mínimo, quatro caramanholas cada um. Instalamos as duas caramanholas adicionais em cada lado do garfo dianteiro das duas bicicletas.

A bicicleta ideal, caso o percurso fosse todo em boas estradas com acostamento, seria a bicicleta de estrada ("speed") ou, melhor ainda, a "Touring Bike" européia, uma bicicleta tipo "speed" com geometria mais confortável, pneus de 700x25c, ou maior, e pedivela triplo com uma ampla gama de relações de velocidade. Apesar da Linha Verde ser uma ótima estrada, iríamos enfrentar alguns trechos esburacados e sem acostamento, em Sergipe, e a "Estrada do Coco", entre a Praia do Forte e Salvador, com muito movimento e com péssimo acostamento. Portanto, a mountain bike era a opção mais adequada. Cada bicicleta foi equipada com pneus "slick" 26 x 1.62, com pressão de 60 a 70 psi; guidom aerodinâmico ("clip"), importantes para descanso e variação de posição; dois faróis dianteiros a pilha e com lâmpada halógena, boa iluminação nas descidas rápidas e menor probabilidade de perda completa de iluminação; duas lanternas de segurança traseiras ("piscas"); bolsa pequena de selim, para ferramentas e sobressalentes e bolsa média de guidom, para capa de chuva, camisa adicional, alimentação e pilhas. Além disso levamos, nas pochetes e nos bolsos traseiros das camisas, duas câmaras de ar cada um, uma mini-bomba de duplo efeito, um canivete suíço, kit de primeiro socorros, além de documentos e dinheiro. O pouco espaço disponível, sem o uso de bagageiro, nos obrigou a revisar a lista várias vezes, retirando ou diminuindo a quantidade de itens. Alguns raios sobressalentes foram presos no quadro da minha bicicleta, com fita gomada.

Enfim o grande dia chegou! Tudo preparado. Será mesmo? A ansiedade era grande. Não víamos a hora de pegar a estrada e testar os nossos planos, converter cada linha da super detalhada planilha em item realizado. As nossas mulheres, Nadja e Tânia, nos levaram de carro até a balsa que faz a travessia do rio Vaza Barris, no Mosqueiro, 25 Km a sul de Aracaju, ponto inicial do percurso de 305 Km até a praia de Itapoã, em Salvador. Escolhemos a rodovia Ayrton Senna, a rodovia litorânea sul de Sergipe, até o entroncamento da praia do Abaís e daí até a cidade de Estância, percorrendo não mais do que 15 Km pela movimentada BR-101. Nos 60 Km iniciais até Estância não falamos muito, estávamos imersos em pensamentos e dúvidas, procurando economizar o máximo de energia, analisando secretamente a reação de cada músculo e a origem suspeita de cada ruído "anormal" emitido pelas bicicletas.

Em Estância fizemos uma lanche reforçado e, com o pôr do sol à nossa direita entramos na estrada para Indiaroba, que liga a BR-101 à Linha Verde, num trecho de 40 Km. Preocupado em me manter bem alimentado, eu tinha preparado, ainda no restaurante, uma caramanhola com bebida energética, que fui bebendo aos poucos até Indiaroba, onde paramos para jantar, depois de 30 Km de uma péssima estrada, cujas ladeiras pareciam bem maiores do que eram de fato. Um dos meus faróis apresentou um mau contato e apagava em cada buraco da estrada em que eu passava. A parada no humilde restaurante de Indiaroba foi providencial. Daí a 10 Km começava a Linha Verde e terminava as nossas possibilidades de encontrar pontos de apoio, os poucos que existiam estariam fechados à hora que iríamos passar por eles.

Atravessamos a ponte do rio Real, divisa entre Sergipe e Bahia, entrando na Linha Verde pontualmente às 20:00 Hs. Bom sinal! Até agora nosso planejamento funcionava como um relógio. Começava, então, a verdadeira prova. De agora em diante estaríamos por nossa própria conta, enfrentando as ladeiras, o cansaço e o sono. Seria uma longa noite. Por volta das nove horas a lua nasceu, iria nos fazer companhia por toda a noite. Tudo estava caminhado perfeitamente. Nem tudo, porém. Logo nas primeiras ladeiras comecei a suar mais do que o normal, apesar da temperatura amena. Era um suor estranho, sem o calor característico, frio. Com o esforço nas ladeiras vinha um pouco de náusea. Os sintomas eram de algum distúrbio digestivo, provocado provavelmente pela bebida energética. As náuseas aumentavam só de pensar na bebida. Tínhamos nas mãos um problema inesperado: o problema digestivo, além da imediata diminuição do desempenho e do abalo psicológico, diminuía minha capacidade de alimentação e absorção do alimento ingerido, o que diminuía ainda mais o meu desempenho.

Fizemos uma rápida parada no posto da polícia rodoviária, a cerca de 30 Km do início da Linha Verde. Havia apenas um policial no posto, bebemos água e seguimos em frente. Próximo à entrada da cidade do Conde, 20 Km depois, o meu mal-estar aumentou e decidi parar para descansar um pouco. A essa altura eu não sabia se conseguiria chegar em Salvador, estávamos na metade do percurso e com quase 100 Km de Linha Verde pela frente e eu me sentia muito mal, suando frio, com náusea e tontura. Assim que paramos, o Guilherme sacou do bolso um embrulho com um pedaço de frango, sobra do jantar em Indiaroba, que ele guardou para uma "eventualidade". Sabendo que, para conseguir chegar em Salvador, precisava me alimentar, comi um pouco do frango e uma bisnaga de "gel". Descansamos um pouco e seguimos em frente.

Aos poucos o mal-estar foi diminuindo, o corpo começou a responder melhor ao esforço nas subidas e eu fui readquirindo a confiança. Com o ânimo readquirido, comecei a curtir a pedalada, a lua já alta no céu, a próxima ladeira se estendendo à frente, aparentando uma inclinação absurda, aumentada pela ilusão de ótica. A madrugada trouxe um frio anormal para o nordeste, que aumentava nas rápidas descidas, mas não resistia aos primeiros metros da subida seguinte. Precavido ao extremo, eu jogava a "coroinha" logo no início das ladeiras e, mantendo um ritmo mais adequado para minha condição, via Guilherme afastando-se rapidamente. Apagando o farol o clarão da lua aumentava e, com a velocidade reduzida, os ruídos do mato invadiam a noite. Guilherme, transformado agora numa distante luz vermelha, já chegando ao topo da ladeira, reduzia a velocidade. Momentos depois, juntos novamente, estávamos a 60 Km/h, com todos os faróis ligados, ladeira abaixo. Depois de um breve trecho plano, o ciclo recomeçava. E assim os quilômetros e as ladeiras iam passando. A sensação de isolamento era quebrada poucas vezes, pelos raros carros que passavam. Paramos para um rápido descanso no entroncamento da entrada da praia de Subaúma, 50 Km depois da última parada e a 100 Km de Salvador. Voltei a sentir um pouco de náusea e tontura, indicando que o problema não tinha acabado totalmente. Uma barra energética, um rápido descanso e já estávamos nas bicicletas novamente.

Com 200 Km já percorridos e a madrugada já avançada, o corpo, depois da parada, pedia um descanso maior. Não caímos na armadilha e seguimos em frente, sabíamos que quanto maior o tempo de inatividade maior seria a dificuldade de retomar o ritmo. Não demorou muito e tivemos uma ajuda inesperada. Ao passarmos por uma casa às escuras, na margem da estrada, formos incentivados a dar um "sprint", por um cachorro com ares de pouco amigo, que nos "empurrou" por uma boa distância. No dia seguinte, Guilherme jurava que o "sprint" tinha sido num trecho em descida, mas passando de carro na volta, constatamos que, ao contrário, tínhamos escapado do cachorro num trecho levemente em aclive! Com essa ajuda não requisitada, readquirimos rapidamente o ritmo da pedalada e em pouco tempo chegamos no segundo posto de policia rodoviária. Fomos muito bem recebido pelo policial de plantão, bebemos e nos abastecemos de água gelada, conversamos um pouco e, com o sol se anunciando no horizonte partimos para cobrir os 25 Km finais da Linha Verde.

Depois de subir a última ladeira, paramos "mortos" de fome no mirante, que fica entre a praia de Imbassaí e a Praia do Forte. Por falta de opção, devido ao horário, tomei o melhor mingau da minha vida, olhando o mar que se estendia no horizonte. Mais uns 5 Km e chegamos, por volta das seis e meia da manhã, no final da Linha Verde, constatando que, apesar de tudo, não estávamos tão atrasados em relação ao tempo planejado. Começava a chamada "Estrada do Coco". Paramos no primeiro posto e tomamos um café da manhã reforçado. Eu me sentia surpreendentemente bem, tinha vencido a pior parte. Pouco mais de 50 Km no plano, com vento a favor, e estaríamos em Salvador. A maior dificuldade seria o movimento crescente e o péssimo acostamento da estrada.

Partimos animados para o trecho final da viagem e logo estávamos pedalando num ritmo surpreendente, tendo em vista que já tínhamos mais de 15 horas de pedal. Duas paradas rápidas para um refrigerante gelado e entramos na pista dupla de acesso a Salvador. A medida que o nosso objetivo se aproximava o ritmo aumentava, tínhamos chances de cumprir as vinte horas, que estabelecemos sem muita convicção. Pouco tempo depois chegamos em Itapoã, onde nossas mulheres e alguns amigos nos esperavam. O ciclo-computador registrava: 305 Km em 19 horas e 50 minutos, uma velocidade média global de 15,4 Km/h. Conseguimos!

De Itapoã seguiríamos pedalando por mais uns 2 Km até a casa de um amigo. Faltando ainda um quilômetro o pneu da bicicleta de Guilherme furou e, ironicamente, chegamos empurrando as bicicletas. Nesse quilômetro final o nosso corpo, sabendo que o trabalho tinha acabado, implorava por repouso, mas com a adrenalina a toda, desfrutávamos uma indescritível sensação de conquista. Afinal de contas tínhamos enfrentado tudo isso, pelo prazer desse breve momento. Algumas perguntas ainda martelavam na minha cabeça: qual será o nosso limite? Qual será o próximo projeto? Quebrar a barreira dos 400 Km? Repetir os 300 Km em um tempo menor?

 

 

Translate this page from  
powered by SYSTRAN Translation Software